sábado, 27 de fevereiro de 2010

Cântico Negro

"Vem por aqui!" -- Dizem-me alguns com os olhos doces,
estendendo-me os braços, seguros.
De que seria bom que eu os ouvisse
quando me dizem: "Vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(há nos meus olhos ironias e cansaços)
Eu cruzo os braços,
Eu nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém!
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
como que rasguei o ventre à minha mãe.
Não, não vou por aí!
Só vou por onde me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde.
Por que me repetis: "Vem por aqui!"???

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao Mundo, foi para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada!

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o longe e a miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tende estradas,
tendes jardins, tendes canteiros,
tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!!!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, e mais ninguém!
Todos tiveram Pai, todos tiveram Mãe;
Mas eu, que nunca principio e nem acabo,
Nasci do Amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições,
Ninguém me diga "Vem por aqui!"
A minha vida é um vendaval que se soltou,
é uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
SEI QUE NÃO VOU POR AÍ!!!

(José Régio)

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